A guerra na Ucrânia e a segurança alimentar
As repercussões da guerra na Ucrânia serão percebidas muito além de suas fronteiras, agravando a fome no mundo.
Nos últimos dois anos, o mundo vem enfrentando grandes dificuldades relacionadas à segurança alimentar, decorrentes principalmente da pandemia do Covid-19. Neste contexto, a guerra da Ucrânia e a aplicação das sanções contra a Rússia adicionam outros enormes desafios. Além dos incalculáveis prejuízos humanitários à população diretamente envolvida, o conflito terá grandes implicações para a segurança alimentar em todo o mundo. Afinal, os dois países possuem um papel fundamental na produção e no fornecimento global de alimentos.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a Rússia é o maior exportador mundial de trigo e a Ucrânia é o quinto maior. Juntos, eles fornecem 19% de toda a cevada para o mundo, 14% do trigo e 4% do milho. Com esses números, os dois países representam mais de um terço das exportações globais de cereais. Também respondem por 52% do mercado mundial de exportação de óleo de girassol. A Rússia ainda tem muita importância no mercado mundial de energia, pois é responsável por 18% das exportações globais de carvão, 11% do petróleo e 10% de gás natural. E por fim, mas não menos importante, a Rússia é o principal produtor de fertilizantes do mundo!
Em resumo, o efeito central esperado do conflito na segurança alimentar é decorrente do impacto nos mercados de grãos e energia. Os preços dos alimentos e combustíveis aumentaram expressivamente desde o início da guerra. O que acabará resultando em alimentos locais mais caros e, consequentemente, deverá inviabilizar o acesso aos alimentos para a maioria da população de diversos países. Ao mesmo tempo, as limitações impostas às operações de programas como o Fórum Mundial de Combate à Fome (WFP) vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU) vem limitando a capacidade de atuação junto às regiões de maior necessidade justamente quando é mais necessário.
Ameaça à disponibilidade de fertilizantes
Dado que metade da população mundial obtêm seus alimentos graças ao uso de fertilizantes, as ameaças de abastecimento desses insumos em virtude do conflito entre Ucrânia e Rússia têm elevado potencial de impacto sobre a segurança alimentar global.
Muitos países da Europa e da Ásia Central dependem da Rússia para mais de 50% de seu suprimento de fertilizantes, e a escassez pode se estender até o próximo ano. O Brasil não fica atrás. Para sustentar o avanço das lavouras brasileiras dos últimos anos, foi necessário ampliar a importação de fertilizantes para manter a nossa produção. A informação foi divulgada pela Associação Nacional para Difusão de Adubos (Anda) que relatou também que em 2020 o mercado brasileiro consumiu 40,6 milhões de toneladas. Desse montante, 32,9 milhões (81%) vieram de fora. Grande parte disso veio da Rússia. Mas, com o fechamento do mercado russo por causa das sanções provocadas pela guerra na Ucrânia, nós aqui no Brasil temos muitos problemas para solucionar em pouco tempo. “Precisamos fomentar a produção aqui dentro”, diz Ricardo Tortorella, diretor executivo da Anda. “O governo está anunciando um plano nacional de fertilizantes, pois temos o insumo debaixo da terra, mas precisa de muita coisa para colocar esse produto no mercado, como logística, regras e licenças. O plano é oportuno, mas foi desenhado para os próximos 30 anos. Não é a solução para o problema que temos agora”, diz Tortorella.
Para ele, vamos precisar de 10 milhões de toneladas de cloreto de potássio para a próxima safra, e esperava-se que 3 milhões disso viessem da Rússia. “Se não vierem, vamos ter de comprar de outros países, como o Canadá. O problema é que o mundo inteiro se abastece na Rússia, e muitos países vão procurar alternativas, não só o Brasil.” A Anda aponta o Brasil como o quarto maior consumidor de fertilizantes do mundo, atrás da China, da Índia e dos Estados Unidos. Também é o maior importador mundial desses insumos – basicamente nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K). A maior causa da necessidade de importar fertilizantes são os nossos solos, pobres em nutrientes devido à sua característica tropical, principalmente na região do Cerrado, onde se concentra a maior produção de grãos.
Preços dos alimentos cada vez mais elevados
Os preços dos alimentos, já em alta desde o segundo semestre de 2020, atingiram um recorde histórico em fevereiro de 2022 devido à alta demanda, custos de insumos e transporte, além de interrupções nos portos. Ainda, segundo dados da FAO, os preços globais do trigo e da cevada subiram 31%, enquanto o óleo de girassol, 60% ao longo de 2021. Outro ponto importante são os preços instáveis do gás natural que também contribuem para elevar os custos dos fertilizantes. Por exemplo, o preço da ureia, um importante fertilizante nitrogenado, aumentou mais de três vezes nos últimos 12 meses (dados da FAO).
As possíveis interrupções nas atividades agrícolas da Rússia e da Ucrânia, principais exportadores de commodities básicas, podem aumentar seriamente a insegurança alimentar global, quando os preços internacionais de alimentos e insumos já são altos.
Os portos ucranianos do Mar Negro fecharam. Mesmo que a infraestrutura de transporte terrestre permaneça intacta, o transporte ferroviário de grãos seria impossível devido à falta de um sistema ferroviário operacional. Os navios ainda podem transitar pelo Estreito da Turquia, uma conjuntura comercial crítica pela qual passa uma grande quantidade de embarques de trigo e milho. Boletins da FAO revelam que os portos russos no Mar Negro estão abertos ainda, e não são esperadas grandes interrupções na produção agrícola no curto prazo. Porém, as sanções financeiras contra a Rússia causaram uma depreciação importante que, se prolongada, poderá prejudicar a produtividade e elevar mais os custos de produção agrícola.
A Rússia é o terceiro maior produtor mundial de petróleo bruto e seu segundo maior exportador. Europa e China importam cerca de 60 por cento e 20 por cento, respectivamente, de óleo da Rússia. Em relação ao gás natural, a Rússia é o maiorl exportador do mundo. Países europeus dependem fortemente das importações de gás natural da Rússia já que 32% do seu consumo total é fornecido pelos russos.
Após a invasão russa na Ucrânia, os preços do petróleo atingiram preços recordes dos últimos 14 anos. O conflito também elevou significativamente os preços do gás na Europa. O fornecimento de petróleo da Rússia para os mercados globais está severamente interrompido. Mesmo antes dos países ocidentais imporem sanções às exportações de petróleo russo, altos custos de envio e a incerteza sobre potenciais compradores reduziram a disposição dos comerciantes de encomendar petróleo dos portos russos.
A agricultura requer energia através de combustível, gás, uso de eletricidade, bem como fertilizantes, pesticidas e lubrificantes. A fabricação de ingredientes para rações também requer energia. O conflito atual fez com que os preços da energia disparassem, com consequências negativas para todo o setor agrícola.
O que se recomenda frente a ameaça de insegurança alimentar?
1. Tudo indica que o cenário atual irá levar a novos aumentos nos preços internacionais dos alimentos, e infelizmente também se espera crescimento no número de pessoas desnutridas mundo afora. Para evitar que tudo isso se agrave ainda mais, a FAO aconselha algumas medidas.
2. Todo esforço deve ser feito para proteger as atividades de produção e comercialização agrícola necessárias para atender às demandas domésticas e globais. As cadeias de suprimentos devem continuar em movimento, o que significa proteger culturas, gado, infraestrutura de processamento de alimentos e todos os sistemas logísticos. Outro ponto é estender a infraestrutura de processamento de alimentos, como moinhos de grãos e instalações de esmagamento de oleaginosas, sistemas auxiliares de armazenamento, transporte e distribuição.
3. Os países dependentes da importação de alimentos da Rússia e da Ucrânia devem buscar fornecedores alternativos para absorver o choque. Eles também devem contar com os estoques de alimentos existentes e diversificar sua produção doméstica para garantir o acesso das pessoas a dietas saudáveis.
4. Os governos devem expandir as redes de segurança social para proteger as pessoas vulneráveis. Na Ucrânia, as organizações internacionais devem intervir para ajudar a alcançar as pessoas necessitadas. Em todo o mundo, muito mais pessoas seriam empurradas para a pobreza e a fome por causa do conflito, e devemos fornecer a elas programas de proteção social oportunos e bem direcionados.
5. Antes de decretar quaisquer medidas para garantir o abastecimento de alimentos, os governos devem considerar seus efeitos potenciais nos mercados internacionais. Reduções nas tarifas de importação ou uso de restrições à exportação podem ajudar a resolver os desafios de segurança alimentar de cada país no curto prazo, mas aumentariam os preços nos mercados globais.
6. Reforçar a transparência e as informações sobre as condições do mercado global de commodities agrícolas, principalmente enquanto importações e exportações de produtos e componentes necessários para as lavouras estiveram instáveis. Iniciativas como o Sistema de Informação de Mercado Agrícola (AMIS) do G-20 poderão aumentar essa transparência ao fornecer avaliações de mercado objetivas e oportunas.
Plano Nacional de Fertilizantes
No dia 11 de março, o governo brasileiro lançou o Plano Nacional de Fertilizantes (PNF) como estratégia para reduzir a dependência do Brasil das importações de fertilizantes.
O PNF é uma referência para o planejamento do setor de fertilizantes para os próximos anos (até 2050) e busca promover o desenvolvimento do agronegócio nacional, considerando os principais elos da cadeia: indústria, produtores rurais, cadeias emergentes, novas tecnologias, insumos minerais, inovação e sustentabilidade ambiental.
Em um contexto mundial de incertezas, a elaboração do plano foi iniciada em 2021 e formalizada pelo Decreto. O documento também institui o Conselho Nacional de Fertilizantes e Nutrição de Plantas, órgão consultivo e deliberativo que coordena e acompanha a implementação do Plano Nacional de Fertilizantes.
A implantação das ações do PNF poderá minimizar a dependência externa desses nutrientes, importados principalmente da Rússia, China, Canadá, Marrocos e Bielorússia. Estados Unidos, Catar, Israel, Egito e Alemanha completam a lista dos dez maiores exportadores de fertilizantes para o Brasil em 2021, de acordo com dados do Ministério da Economia.
O PNF buscará readequar o equilíbrio entre a produção nacional e a importação ao atender sua crescente demanda por produtos e tecnologias de fertilizantes. Pretende-se diminuir a dependência de importações, em 2050, de 85% para 45%, mesmo que dobre a demanda por fertilizantes.
Principais fontes
Associação Nacional para Difusão de Adubos (ANDA)
Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). The importance of Ukraine and the Russian Federation for global agricultural markets and the risks associated with the current conflict, Rome, 2022. Disponível em: https://www.fao.org/3/cb9013en/cb9013en.pdf
Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). New Scenarios on Global Food Security based on Russia-Ukraine Conflict, 2022. Disponível em: https://www.fao.org/director-general/news/news-article/en/c/1476480/
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Governo Federal lança Plano Nacional de Fertilizantes para reduzir importação dos insumos, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/governo-federal-lanca-plano-nacional-de-fertilizantes-para-reduzir-importacao-dos-insumos
The World Food Programme (WFP). Ukraine war: More countries will ‘feel the burn’ as food and energy price rises fuel hunger, warns WFP, 2022. Disponível em: https://www.wfp.org/stories/ukraine-war-more-countries-will-feel-burn-food-and-energy-price-rises-fuel-hunger-warns-wfp